3 EM 1
Eis que anunciei no meu facebook a desastrosa e retrógrada situação daquela tarde de inverno: iria vestir minha camisa renascentista de rufo branco já que não tinha encontrado nenhuma e se alguém me perguntasse sobre o porquê da roupa, diria que eu era um Quaker. Saí de casa e dobrei o rufo de modo que a gola rendada sobre o casaco preto montou um traje barroco. Estive nos lugares que precisei ir e uma situação barroca aconteceu! Um milagre reconstrucionista de São Rommel!
Estou lá passando pela principal rua do Ipiranga e a maior loja de esportes tem uma folha de sulfite grudada no muro com os seguintes dizeres: “A loja Momentos Esporte está contratando 03 vendedor [aí vinham as virtudes como experiência, dinamismo, força de vontade etc etc etc e descarga] e 02 algum cargo” [também no singular juntamente com uma lista de virtudes.
Fico pensando o como a vida nos prega surpresas, nada mais piedoso do que eu vestido tal como um Gregório de Mattos sem querer pelo simples intermédio divino de não achar uma camisa melhor, ver esta cena de prece, de milagre, de oração na Momentos Esporte. “03 vendedor” só pode (e há de ser) uma invocação à Santíssima Trindade (três pessoas em um só deus)! Isso! A Momentos Esporte está contratando Deus, por isso a vaga está no singular e possui uma longa ladainha de atributos para preenchê-la.
Veja, eu sou totalmente contrário a preconceito, principalmente o linguístico. De fato, prefiro crer que a Momentos esteja fazendo uma prece, bonita homenagem a Deus, isto sim é um caso de silepse de número, 3 pessoas em 1 só, por isso o substantivo pode concordar com 3 ou 1, daí não é erro usar “vendedor”, isto mesmo, no singular! Prefiro acreditar que a vaga só pode ser direcionada à SS Trindade do que julgar gramaticalmente como um erro. Não é erro, pois já expliquei a quem a vaga é destinada. Além do mais, os atributos, virtudes e requisitos para preenchê-la somente Javé, Jesus e o Espírito Santo poderiam ter. E se for erro mesmo? Erro? Sim, poderia ser erro de concordância, mas se é erro, não é pecado, o que torna o erro santíssimo porque se refere a Deus ou você, nobre leitor, acaso acha que alguém aqui da Terra poderia preencher a vaga, poderia? Acredita mesmo que todos nós possuímos as mesmas virtudes de Deus e ou do dono da bodega? Eu, hein!
E se não fosse a Trindade, se não fosse Deus, mas a Deusa?! Sim, seu Amando, dono da Momentos Esportes, homem infalível em assuntos de cultura, doutor, erudito, clássico, fiel conhecedor da língua portuguesa deve sim ter se referido à deusa. Deusa, sim! Aquela da concha, a Vênus com suas três servas, as três graças.
Uma vendedora lá a jorrar flores aos clientes vivendo de amor, de motivação, de dinamismo, enfim de brisa! E o mesmo com as outras graças. Uma ficaria responsável por esses atributos de igreja, a outra poderia fazer a dinâmica de grupo (pra quem não sabe o que é isso é tipo uma brincadeira estranha só para gastar tempo, parece aqueles vídeos de igreja neopentecostal tirando o demônio da pessoa). A última graça poderia ficar responsável pela, deixa eu ver, ah pelas vendas e pela seleção de pessoal, ué, que foi? Alguma graça precisa fazer o serviço de graça, escrever na tabuleta uma silepse (ou erro mesmo! E dos grandes!) o que gera muita graça!
Chega um momento da vida que você cansa, vê o anúncio desses e sente um misto barroco. É estado de graça ver a piedosa manifestação cristã. Todavia, ao invés de contemplar essa manifestação erudita de fé do seu Amando e, inclusive lhe contando isto numa crônica ao leitor, talvez fosse mais gracioso estar compondo uns versos, escrever um tratado de metrificação, algum livro de ortografia, lecionar aulas particulares de concordância nominal...
Encaminhado ao site coletivo Casa de Lápis do Sr. Eduardo Ribeiro
Rommel Werneck
Enviado por Rommel Werneck em 04/05/2012